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Por Natália Zuazo
Natália Zuazo é cientista política, jornalista e autora do livro "Guerras de internet", publicado em 2015
pela Random House Argentina. Este artigo é uma versão reduzida do capítulo do livro com o mesmo nome.
Presentes nos noticiários e até em propagandas, as imagens das câmeras de segurança vão se legitimando nos meios de comunicação como uma maneira eficiente de combater a violência. Tomam a forma de olhos, capazes de eliminar a criminalidade por sua mera presença. Mas, indo além desta narrativa, o que se nota é que não existem grandes comprovações da relação entre câmeras e aumento da segurança. Na prática, o modelo de negócios dessa indústria se baseia é em uma mistura lucrativa de marketing político e entretenimento, na maioria da vezes, financiado por dinheiro público.
O taxista parou de assobiar por um instante a zamba El arriero e conferiu se entendeu bem o destino: —Você está indo lá nas câmeras, né?
Chegamos ao Centro de Operações de Tigre (COT).
Ali, 24 horas por dia, 365 dias por ano, 300 funcionários assistem, controlam e alertam sobre os movimentos registrados pelas 1.300 câmaras que vigiam os 360 quilômetros quadrados da região.
Na parede central, 18 monitores registram cada movimento do município. De cada lado da sala, os cem operadores do turno da tarde observam seus monitores. Os operadores não conversam entre si. Não se pode falar, a menos que os supervisores perguntem a respeito de uma imagem em particular. A tarefa requer que os trabalhadores permaneçam imóveis, calados, como se estivessem algemados ao seu cubículo. Tudo que devem fazer é ficar atentos para detectar possíveis problemas. São voyeurs profissionais da vida dos outros no panóptico desse subúrbio. Durante 40 minutos, a função de cada operador é manter os sentidos atentos, detectar qualquer movimento suspeito, ou confirmar com a visão uma denúncia que chegou por telefone. Depois disso, podem descansar 20 minutos em uma sala de relaxamento, com mesas de pingue-pongue e biblioteca, ou ir ao espaço verde, longe do ar condicionado e das luzes artificiais.
O Centro de Operações de Tigre, inaugurado em 2008, atualmente também é a sede da Secretaria de Proteção ao Cidadão do município, e onde trabalham os funcionários da Secretaria de Trânsito e Transporte, da Defesa Civil e da Secretaria de Direitos Humanos, que controla as funções de segurança. Na estrutura do ministério, os 300 operadores de câmaras são o grupo mais numeroso. Também são os que trabalham no setor mais visível, o de vigilância por vídeo, um sistema implementado em 2008 pelo prefeito da época e atual deputado estadual Sergio Massa, responsável por instalar as primeira câmeras de monitoramento urbano. Hoje, sete anos depois, as câmeras já ficaram famosas. São praticamente um sinônimo do município de Tigre e se replicam em outras cidades através da televisão, que as coloca como protagonistas de operações policiais várias vezes por semana. Além disso, elas representam a encarnação do futuro: para Massa, atual candidato à presidência da Argentina, a segurança é o principal tema da campanha, e instalar câmeras, desta vez em todo o país, seria uma das primeiras medidas tomadas por seu governo, caso chegue ao poder.
—Quando Sergio visita uma cidade, não pedem para que ele crie um plano social. Pedem pela instalação de câmeras..
—Sergio é imediatamente identificado com as câmeras de segurança —afirmou Santiago García Vázquez, que trabalha há dez anos com a equipe de imprensa de Sergio Massa.
—Não é perigoso “usar” a insegurança social para fazer campanha? — questiono.
—Meu desafio é colocar Massa na presidência. Contudo, Massa é um dos mais de 135 prefeitos da província de Buenos Aires. Por que um meio de comunicação nacional estaria interessado em algo tão regional? É muito difícil. Por isso nós falamos sobre a segurança. E precisamos mostrar resultados. Já faz sete anos que minha tarefa é garantir que ao menos duas vezes por semana “as câmeras de segurança de Tigre” apareçam na imprensa.
—Se o objetivo era esse, você conseguiu. As câmeras de Tigre estão em todos os cantos.
—Naturalmente. E digo mais: nós conseguimos que as câmeras se tornassem protagonistas. “As câmeras possibilitaram a prisão de um delinquente”, “As câmeras conseguiram isso”, “As câmeras, isso e aquilo”. Queríamos divulgar as câmeras e conseguimos. Ao final, Tigre diminuiu em 80% o número de roubo de carro. Mas isso foi fruto de sete anos de trabalho.
—A imprensa foi fundamental para isso. Em que momento você os converteu em aliados das câmeras?
—Em 2010, durante uma viagem de Sergio, me ligaram do COT. “Caiu um avião na rua 197 com a Colectora, ao lado de um posto de gasolina”. Podia ter explodido tudo, mas o pessoal das câmeras viu bem a tempo: eles mandaram os bombeiros que chegaram em minutos e não aconteceu nada. A imagem era espetacular: dava pra ver o avião cair, bruuuuum. Procura no YouTube. Tem milhares de acessos. Era perfeito para a TV. Os produtores estavam se estapeando para ter acesso às imagens.
—E o que você fez?
—O telefone tocava sem parar e os produtores ficavam no meu pé o dia inteiro: “Me passa essa imagem, me passa essa imagem”. Então conversei com Sergio. “Se é para passar a imagem à imprensa, essa tem que ser nossa estratégia de agora em diante”, ele me disse. “Mas eles têm que deixar claro que foi graças às câmeras que pudemos evitar uma emergência. Precisam dizer que as câmeras dão resultado”. E foi desse jeito. Enviei o vídeo a todos os canais de TV por motoboy. Agora já avançamos tanto que fazemos o upload diretamente a um servidor e os canais baixam o arquivo, todos ao mesmo tempo. Somos muito democráticos com isso. É claro que às vezes também temos que pedir autorização à justiça para divulgar alguns vídeos. Mas sempre passamos tudo para a imprensa..
—Mas a decisão foi questionada naquele momento. Nem todo mundo estava de acordo com a entrega desse material aos meios de comunicação.
—Claro. Os setores do velho peronismo de Tigre questionaram porque estávamos fazendo propaganda com as câmeras. Sabe por quê? Porque fomos os primeiros. Não havia centros de monitoramento e uma política tão agressiva de comunicação. Eu tinha um vídeo que mostrava a queda de uma avião e a chegada de uma ambulância em seis minutos. Não precisava nem editar aquilo. Tudo em tempo real! Para os canais era um verdadeiro filé.
—E em relação à privacidade das imagens, vocês sofreram alguma resistência, precisaram discutir?
—Sim, já que na época não éramos tão fortes politicamente. O Conselho Deliberante ainda era comandado pela oposição que não queria aprovar a instalação da fibra ótica necessária para as câmeras, seguindo o argumento da privacidade. “Vamos nos meter em coisas delicadas, fazer marketing ao invés de política”, eles diziam. Também havia resistência do nosso lado. Mas Sergio já estava decidido: “Vamos a fundo com isso”, dizia. Por fim, ganhamos, instalamos os cabos de fibra ótica e as câmeras começaram a funcionar.
—Para você, se as câmeras funcionam, o debate não é tão importante.
—Veja bem, toda a comunidade “mais intelectual” realiza o debate da privacidade versus câmeras. Mas a realidade é que o roubo de carros diminuiu. Não usamos as câmeras para vigiar propriedades privadas. Se um avião cai em um condomínio fechado, como já aconteceu, e eu tenho a imagem do avião no céu, isso eu posso mostrar, a imagem é minha. Não dá para mostrar o que fica do lado de dentro. Mas enquanto está caindo, não é propriedade privada, né?
—Mas, intimamente, você se perguntou se seria bom viver rodeado de tantas câmeras?
—Sim, eu também me preocupava com o assunto. “O que vai acontecer se duas pessoas estiverem se beijando dentro de um carro ou em um apartamento e o cara que está monitorando for um pervertido?”, me perguntava. Mas há um protocolo de ação para os operadores que os impede de invadir a privacidade alheia. Caso isso aconteça, o operador é afastado do cargo. Mas até agora isso nunca aconteceu. Eu tive que explicar isso muitas vezes aos jornalistas. A câmera evita problemas. Temos câmeras com escutas nas quais dá pra ouvir os bandidos dizendo: “melhor não irmos a Tigre porque lá eles filmam tudo”, ou “é melhor não vender drogas aqui”. Isso ajuda, evita que os delinquentes venham a Tigre.
—Justamente, uma das críticas aos sistemas de vigilância por vídeo é que evitam a criminalidade em um território, mas que o problema só muda de lugar.
—Está certo, mas aí o que Massa diz é que sua responsabilidade é com os habitantes de Tigre que votaram nele. Ele queria que Tigre fosse um lugar seguro. Depois ele poderá trabalhar com San Fernando, para que os bandidos também não estejam lá. A ideia é expulsá-los de vez. Impedir que vivam e que venham para cá. Agora que ele quer governar o país, ele deseja a mesma coisa: uma câmera para cada mil habitantes. Sergio sempre foi claro com isso: quanto mais olhos, melhor. Quanto mais vigiado estiver o território, melhor.
—Então a solução contra a falta de segurança é encher o país de câmeras. Ir afastando os delinquentes até que eles caiam no rio, por exemplo.
—Bom, o COT também tem lanchas no rio.
Santiago García Vázquez sorri, mas está falando sério. Repete o que seu chefe declara na imprensa: “A Argentina precisa de uma câmera para cada mil habitantes. Quanto mais olhos nos vigiarem, mais seguros estaremos”. Para Massa, segurança é o mesmo que introduzir a tecnologia na vida das pessoas. Em sua Argentina do futuro, cada movimento poderá ser visto e controlado.
Massa, de 43 anos, não é o único político argentino, ou do mundo, que recorre às câmeras como una solução eficiente contra a falta de segurança. Mas certamente foi o primeiro a apresentá-las como o foco do plano político. Seu país ideal seria vigiado com um “ferrolho digital”, impedindo a entrada de delinquentes, e mantendo do lado de dentro os cidadãos “de bem”. Se são delinquentes, não são cidadãos. Tigre, o lugar que governou e onde vive hoje em dia, é o exemplo a ser copiado e estendido a todo o país.
Os 380 mil tigrenses já são parte do experimento: convivem com uma câmera para cada 290 habitantes, um número que cresce a cada ano e um modelo que contagia os distritos vizinhos como San Fernando e Escobar, que também vão se armando com essa tecnologia. Tigre é uma cidade-Grande Irmão, onde viver sob vigilância é o preço a ser pago pela sensação de segurança.
Ao norte de Buenos Aires estão algumas das cidades mais vigiadas da Argentina. E é lá que também estão as mais fragmentadas do ponto de vista social: em Tigre cerca de 60% dos territórios são ocupados por comunidades isoladas, condomínios fechados, e complexos urbanos de luxo. Ali vivem somente 10% da população de Tigre (incluindo o próprio Massa, que vive no condomínio fechado Isla del Sol). Noventa por cento da população vive nos 40% restantes do município. Embora 91% dos lares tenham boas condições de vida, ainda há cerca de 47% de casas sem acesso a gás encanado e 83% sem acesso a fossas sépticas1. Porém, de acordo com o candidato da Frente Renovadora, o que as pessoas pedem é por mais segurança. Ou seja, por mais tecnologia.
Desde sua chegada ao poder em Tigre, a segurança tornou-se um dos focos da campanha de Massa. Sua estratégia, tanto para a segurança, quanto para outros aspectos da administração pública, inclui uma grande dose de tecnologia. Em seu município, carros de polícia, ônibus, bancos e discotecas também têm câmeras, sistemas de GPS e botões de pânico conectados ao Centro de Operações de Tigre, o mesmo lugar onde chegam e são vigiadas as imagens das 1.300 câmeras (em sua maioria do tipo domo). As entradas e saídas da cidade também foram equipadas com fibra ótica para permanecerem constantemente vigiadas. As placas dos carros que entram e saem do município são monitoradas por câmeras especiais. As quatro estações de desembarque de passageiros (de trem, do porto fluvial e os dois terminais de ônibus) também contam com câmeras fixas especiais que trabalham com reconhecimento facial em áreas de grande circulação de pessoas, especialmente durante o fim de semana. Além de recorrer ao sistema estadual de emergência policial, Tigre também conta com o Alerta Tigre 2.0, um sistema que funciona via SMS e alerta a polícia local sobre delitos cometidos. As mulheres vítimas de violência de gênero contam com um dispositivo de alerta especial. O município também utiliza três drones e contratou pilotos especialmente capacitados para realizar patrulhas quando necessário.
A tecnologia também está presente nas diversas funções do Estado, por meio de um escritório de inovação onde funcionam cerca de 15 áreas que prestam serviços aos cidadãos. No local é realizada a gestão de serviços que vão das páginas do município nas redes sociais aos semáforos informatizados, incluindo a atualização de todos os sistemas de informação e dos alertas do município: entradas e saídas da rodovia, o trânsito, o nível do rio, o alerta de possíveis aumentos do nível da água nas ilhas. A assistência social e os serviços ao cidadão também foram informatizados. Porém, o que o candidato Massa torna mais visível é a tecnologia aplicada à luta contra a falta de segurança pública. Segundo ele, isso comprova que investir em tecnologia gera resultados positivos para a sociedade, são um exemplo de “boa administração”.
Sergio Massa — assim como seus companheiros da geração política intermediária2, Mauricio Macri, Daniel Scioli, Francisco De Narváez, ou Jorge Capitanich— ama a administração.
Administração é tempo. É fazer as coisas mais rapidamente, sem passá-las pelo jugo da ideologia. Não são necessárias equipes acadêmicas ou intelectuais - como na esquerda. O que precisamos são de “planos estratégicos” criados por “equipes técnicas”. Daí à incorporação da tecnologia como a principal ferramenta da administração é um pulo. Para eles, a tecnologia também não tem política, nem ideologia. É apenas um meio para alcançar resultados. Basta comprar, usar e oferecer uma solução. Se a câmera ajudou a prender um ladrão de aparelhos de som esta tarde, a imagem precisa chegar à TV na mesma noite.
Enquanto os corpos estão sendo cada vez mais vigiados, os dados registrados pelos aparelhos caem nas mãos de diferentes autoridades do governo e da segurança pública. Nossa privacidade fica em poder das empresas que fornecem as tecnologias e fazem a gestão das bases de dados. Nelas, existem informações tão específicas que permitem identificar uma pessoa por meio de suas impressões digitais e sua íris, ou ter acesso às imagens dos lugares por onde esse indivíduo passou: uma estação de trem, uma rua, um ônibus, uma estrada. Entretanto, essa informação nem sempre é tratada com a devida segurança. Às vezes ela serve apenas como mais um meio para obter resultados “de administração”.
Com esses “resultados” é possível ganhar eleições ou, ao menos, é com esse objetivo que eles são divulgados. No meio tempo, a tecnologia continua a se instalar em todas as cidades do país. Sem debate público sobre seus usos, sobre o dinheiro público destinado para sua compra, ou sobre quem serão os donos dos dados e como eles serão manejados. As tecnologias simplesmente se multiplicam por nossos corpos e pelos espaços que ocupamos.
Tigre é um dos distritos mais vigiados por câmeras de segurança de toda a Argentina. Contudo, suas 1.300 câmeras não estão distribuídas de forma homogênea pelo município: nos condomínios fechados não há câmeras públicas. Isso significa que no restante da cidade, as 152 mil pessoas que vivem “fora dos muros” - ou seja, nos bairros de menor poder aquisitivo - estão na área mais vigiada. Em Tigre, a maioria das câmeras são em estilo “domo”, uma espécie de olho escuro em forma de esfera, instalado no interior de uma carcaça, que permite observar em 360 graus a partir de diferentes pontos, sem que se possa ver com facilidade para onde a câmera está apontando. A marca mais comum, tanto nesse distrito, quanto no resto do país, é a Bosch, cujos modelos VG4 e VG5 são os mais comprados pelas cidades argentinas. As câmeras são importadas e são adquiridas por meio de licitações que —também em boa parte do país— são vencidas pela GlobalView, a empresa líder do mercado, que além de vender as câmeras realiza sua manutenção e as conecta às redes de fibra ótica para transmitir os dados. Além do modelo domo, tanto em Tigre, quanto em outras localidades, outros modelos de câmera também são utilizados, como é o caso das câmeras fixas, que são direcionadas a determinados pontos para o reconhecimento facial em áreas de grande fluxo, como estações de trem, ou terminais de ônibus. Nesses casos, são usadas câmeras Panasonic com tecnologia DVR (um circuito fechado que grava imagens analógicas que são digitalizadas logo em seguida).
Na Cidade Autônoma de Buenos Aires, seus três milhões de habitantes convivem com 3.200 câmeras. Ou seja, existe uma para cada 930 pessoas. As primeiras foram instaladas em 2005 na Praça Houssay, entre a Faculdade de Ciências Econômicas e a Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires, durante o mandato do antigo chefe do governo portenho, Jorge Telerman. Em 2007 foi criado o primeiro centro de monitoramento da cidade, cobrindo as praças públicas com 74 câmeras. Em 2009, com a criação da Polícia Metropolitana (a força policial local), ampliou-se a vigilância. Atualmente, existem 2.000 câmeras, que se somam às 1.200 instaladas também em solo portenho pela Polícia Federal.
Um portenho, um visitante, ou um turista que caminha pela Avenida 9 de Julio, da altura da Avenida Independencia até a Santa Fé, será filmado doze vezes, contando apenas as câmeras oficiais (e ignorando as instaladas por empresas privadas). As praças, avenidas e lugares com maior fluxo de pessoas (o Obelisco, as estações do Retiro e de Once) são as que têm o maior número de câmeras. Já entre os bairros, Puerto Madero se destaca como o mais vigiado, considerando-se que com apenas 8.000 habitantes em dois quilômetros quadrados existem 25 câmeras: ou seja, uma para cada 300 habitantes, uma cifra similar à média registrada em Tigre. A vizinhança possui uma taxa de ocupação baixíssima: apenas 28% das residências são habitadas. Contudo, 45 mil turistas de alto poder aquisitivo vão ao bairro todos os dias, que além das câmeras policiais também são registrados pela grande quantidade de câmeras dos edifícios desocupados e da Prefeitura, que mantém na região um índice de delinquência próximo de zero. É no resto da cidade que os delitos são registrados e se concentram em outras zonas de alto poder aquisitivo: Palermo, Recoleta, Belgrano, Núñez e Colegiales.
A Polícia Metropolitana conta com um Centro de Monitoramento Urbano (CMU) na sede de Barracas, próxima à Avenida Patricios. Ali, na zona sul da cidade, no sexto andar de um edifício cercado de construções modernas, trabalha uma equipe de cinco programadores de software que são responsáveis pelas tarefas técnicas, uma equipe jurídica que processa os pedidos judiciais de liberação de imagens, além dos funcionários civis e policiais que trabalham nas duas salas.
Na primeira sala, que é pequena e escura, são recebidos os alertas dos botões de pânico instalados em edifícios públicos, asilos, clubes, imobiliárias, lojas, igrejas e templos religiosos, além dos que são distribuídos entre zeladores, testemunhas sob proteção judicial e mulheres que sofrem violência de gênero, entre outras pessoas. Dezenas de monitores se destacam na escuridão, mostrando mapas dos bairros e imagens com cores que exibem os diferentes tipos de alerta.
Na segunda sala, mais luminosa e com vista para leste, trabalham 30 operadores em três turnos de oito horas, com quinze minutos de descanso a cada 60 minutos de monitoramento de imagens. A idade dos profissionais varia muito e vai desde pessoas com menos de 30 anos a outras com mais de 50.
Cada operador vê 16 câmeras durante seu turno. O zoom só é acionado caso ocorra algum tipo de movimento estranho, seja a presença de fumaça ou alguém se movendo de forma estranha. Caso isso ocorra, um superior deve ser informado para que a câmera seja direcionada para um local específico (a porta de uma casa, uma sacada, o banco de uma praça, ou uma pessoa). Caso seja confirmado o delito ou uma situação em que seja necessária alguma ação, o oficial informa o comando do Centro Único de Coordenação e Controle, localizado na zona norte da cidade, em um prédio na rua Guzmán, em Chacarita, que por sua vez envia um policial, uma ambulância ou o que quer que seja necessário.
O inspetor Jorge Brieva, atualmente a cargo do CMU, trabalha há 24 anos na área técnica da polícia. Inicialmente no setor de telecomunicações da Polícia Federal e agora à frente das câmeras da Polícia Metropolitana.
“Nossa força policial já nasceu digital, mas nós que passamos pela experiência analógica também viemos para cá”, conta. “Podemos ter as câmeras, mas é preciso estar sempre atento e compreender como o crime vai se adaptando. Para nós que trabalhamos há tantos anos com isso, os movimentos suspeitos simplesmente saltam no monitor”.
Magro, de camisa e gravata impecáveis, barba feita e penteado como se fossem oito da manhã, Brieva explica que, além das câmeras, a Polícia Metropolitana conta com outras ferramentas tecnológicas dedicadas à segurança: um caminhão similar ao usado por canais de TV (com duas câmeras domo e outras duas fixas), além de duas “mochilas de deslocamento rápido” que transmitem imagens via 3G e um drone próprio3. Desenvolvido pela própria polícia durante dois anos, ele foi apelidado de “Metrocóptero” e é usado para realizar o controle de trânsito e sobrevoar áreas durante situações de emergência.4
Na terceira fileira de cubículos da sala de monitoramento da Polícia Metropolitana se encontram os supervisores no alto de uma plataforma, de onde veem um telão com 12 monitores, bem como as telas de todos os operadores. No escritório principal, uma tela exibe ao vivo as principais redes de notícias portenhas: TN, C5N, Canal 26, CN23 e os canais 13, 11, 9, 7. Em alguns canais, as câmeras são as protagonistas, mostrando o trânsito da manhã. No canal seguinte, as imagens que ocupam a programação são as de um assalto frustrado e de um acidente ocorridos na noite anterior. Em outra emissora, entre as fofocas de famosos, um talk show mostra uma receita de torta de atum e imagens das câmeras móveis de Mar del Plata.
Assim como outros governos, a cidade de Buenos Aires também quer mostrar “a boa gestão de segurança” por meio das câmeras de vigilância.
—Para a sua área, qual é a importância da relação com a imprensa?, pergunto ao inspetor Brieva.
—É importante. Nos interessa que a sociedade saiba o que está acontecendo. Além disso, também somos fonte de informação para os meios de comunicação. Por exemplo, quando divulgamos o caso dos lavadores de para-brisa que cometiam roubos na Avenida 9 de Julio, queríamos alertar a população de que isso estava acontecendo. Sem a imprensa ninguém veria o que fazemos.
—As pessoas sempre aceitam a presença das câmeras?
—Quase sempre. Em alguns bairros não. Quando quebram as câmeras por vandalismo também não. Nestes casos, a polícia acompanha as empresas que instalam as câmeras e esperam até o fim da instalação.
Na Polícia Metropolitana, uma vez que as câmeras captam as imagens, elas são arquivadas em uma base de dados durante 60 dias para que o judiciário possa contar com esse material com prova. Contudo, também há casos em que os cidadãos fazem pedidos específicos, assim como as seguradoras, que pedem imagem como documento no caso de acidentes.
Além de Tigre e da cidade de Buenos Aires, outras cidades do país, em especial as de maior densidade populacional, também começaram a adquirir câmeras de vigilância. Segundo dados do Ministério da Segurança Nacional, nos 135 municípios da província de Buenos Aires existem cerca de nove mil câmeras ativas e 125 centros de monitoramento.5
Os municípios do norte da província —entre eles vários controlados pelo massismo e pelo PRO— são os campeões de vigilância. San Isidro, com 1.030 câmeras para 45 mil habitantes, tem uma média altíssima: uma para cada 45 habitantes, conectadas por 100 quilômetros de fibra ótica e monitoradas a partir de uma sala de controle localizada no mesmo edifício da prefeitura. Em Vicente López forma instaladas 400 câmeras, para 270 mil habitantes: uma para cada 675 pessoas.
Na região metropolitana de Buenos Aires, o município com maior número de habitantes é La Matanza, com 1,8 milhões de pessoas registradas por 600 câmeras. Um número muito inferior ao de Tigre, ou de San Isidro. Caso seus habitantes quisessem alcançar a média dos vizinhos do norte, teriam de conviver com 6.000 câmeras, dez vezes mais que o volume atual (o que seria impossível de controlar). Com diferenças na quantidade e no desenvolvimento, uma pequena parte dos 135 municípios ainda não comprou câmeras e expandiu as redes de fibra ótica para conectá-las. Cada câmera custa entre 15 e 30 mil pesos, de acordo com suas configurações. A verba para a compra das câmeras e a instalação das redes de fibra ótica muitas vezes vem do município, mas também pode vir de programas de segurança do estado e de programas federais. Quando os municípios têm governos opostos ao do governador, a compra de tecnologias para a segurança pode até ser realizada, mas geralmente é divulgada como fruto de uma “preocupação” dos prefeitos com a “segurança dos cidadãos”, enquanto “outros não se preocupam com a cidade” (referindo-se, neste caso, ao governo do estado).
Além da compra de câmeras, de carros de polícia “inteligentes” e de botões de pânico, os governos locais também divulgam os programas de capacitação de policiais e dos operadores responsáveis por monitorar as imagens e observar os cidadãos para que estejam em segurança. Nas redes sociais dos municípios, as pessoas agradecem e também pedem por câmeras que possam vigiar o entorno de suas casas: “Quero uma câmera na esquina da 202 com a Sobremonte, obrigado”, afirma Cecilia na página da prefeitura de San Fernando no Facebook. “Precisamos de uma câmera na esquina da Ambrosoni com a Alem (Victoria). Todas as noites tem gente que fica lá bebendo e fumando maconha. É claro que estão vendendo drogas”, escreve Florencia. “Tomem conta do bairro Mil Viviendas. Precisamos de câmeras. Aqui há muita delinquência, senhor prefeito!”, pede Bárbara. “Está na hora de colocar uma câmera na Beltrán com a Miguel Cané, porque todos os fins de semana bandos de jovens se atacam com pedradas e garrafadas. Eles parecem selvagens!”, se queixa Claudio.
Em Tigre, Sergio Massa não é o único que investiu na estrutura tecnológica de segurança, mas foi um dos primeiros que se animou em divulgar o sistema e defendê-lo de seus opositores. Entretanto, o modelo de monitoramento por câmeras também recebeu o respaldo das autoridades do estado. Elevado ao cargo de ministro da segurança em 2013, o ex-prefeito de Ezeiza, Alejandro Granados, afirmou que seria necessário instalar “milhares e milhares de câmeras” para enfrentar a insegurança e que precisamos “encher a província de policiais e câmeras”.
Mesmo a presidenta da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, se pronunciou a favor da vigilância por vídeo: “Quero essas câmeras em todos os cantos”, afirmou no dia 3 de dezembro de 2012, durante a inauguração de um sistema de raios-x no Porto de Buenos Aires.6 “Quanto mais câmeras, melhor”, repetiu várias vezes durante sua fala, na qual relatou como esses olhos eletrônicos haviam ajudado a encontrar o narcotraficante Henry de Jesús López Londoño, também conhecido como “Mi Sangre”, que estava refugiado na Argentina. A presidenta seguiu os próprios conselhos. A partir de março de 2009, o governo federal destinou verbas especiais para o financiamento do Plano de Proteção ao Cidadão, que permitiu ao governador e candidato a presidente Daniel Scioli realizar a compra de câmeras e outras tecnologias empregadas na luta contra o crime na província de Buenos Aires.
Por enquanto, as câmeras são uma boa solução para todos: para os governos são uma forma de mostrar a capacidade de gestão em segurança, e servem de argumento em campanhas e na imprensa. Para a população, ter mais câmeras significa estar mais protegido. Assim, a verba para comprá-las não para de crescer. A província de Buenos Aires está criando condições para que os municípios com verba pública mais limitada, que ainda não possuem câmeras e que têm boa relação com o governo central possam comprá-las: Tres de Febrero, Esteban Echeverría, Berazategui são algumas das cidades. No verão de 2015, Mar del Plata inaugurou um centro de monitoramento que o prefeito, Gustavo Pulti (da Frente para la Victoria), afirmou ser “o maior da Argentina”, com investimentos em sistemas de acesso biométrico e facial e um servidor próprio. A vigilância por vídeo aumenta em tempos de eleição, transformando-se em uma forma de competição entre os municípios para ver quem constrói o maior bunker-panóptico.
As cidades pequenas também não fogem à lógica. No interior mais profundo da província de Buenos Aires, geralmente associado com a tranquilidade da vida rural, onde não existe criminalidade e as pessoas podem “dormir com a porta aberta”, também já começou a corrida tecnológica. Em Carlos Casares, uma cidade de 22 mil habitantes que vive da agropecuária, já foram instaladas 20 câmeras, um centro de monitoramento e está prevista a instalação de outras 20 câmeras. Na cidade, onde é realizada a Festa Nacional do Girassol, os cidadãos também doam câmeras ao município, algo que a imprensa local relata com orgulho.
No resto do país o panorama é similar. As grandes capitais das províncias também adotam as câmeras. Em Córdoba já foram instaladas 150 câmeras, em Santa Fe 400, e mais 100 no município de Rosario, além de outras 600 previstas para o futuro. Em Río Negro, as cidades de General Roca e Cipolletti contam com 200 câmeras. San Luis já tem 500 câmeras de segurança para 500 mil habitantes, e elas são divulgadas como “um elemento que atrai o investimento dos empresários”. Paradoxalmente, a mesma província se orgulha de ter alguns dos principais paraísos turísticos do país, como Villa Mercedes e Merlo, duas cidades que também já contam com câmeras de vigilância pública. Algo similar ocorre em Tafí Viejo, na província de Tucumán, uma cidade de 39 mil habitantes, a Capital Nacional do Limão. Foram instaladas 125 câmeras na cidade, uma para cada 300 habitantes, além de um centro de monitoramento com tecnologia comprada da Movilnet, uma empresa de Ushuaia, no outro extremo do país.
No mundo todo, o avanço da vigilância por vídeo se acelerou a partir de 2001, após o atentando do 11 de setembro em Nova York, e dos ataques terroristas em Madri e Londres em 2004 e 2005. Nos Estados Unidos e na Europa, a “ameaça terrorista” foi e continua a ser o argumento utilizado para aumentar o controle urbano. Na América Latina, a desculpa que justifica o avanço da vigilância por vídeo é “a insegurança pública”.
O Brasil tem algumas das cidades mais vigiadas do mundo: São Paulo e Rio de Janeiro. Entre as câmeras públicas e privadas, a capital financeira do país calcula que tenha uma câmera para cada 8 habitantes, um número inquietante, se comparado às médias de uma câmera para cada 14 pessoas em Londres e uma a cada 36 habitantes em Pequim, duas das cidades mas vigiadas do planeta. Em todo o Reino Unido há 5,9 milhões de câmeras entre as públicas e as privadas. Nos Estados Unidos, Chicago lidera o ranking com 22 mil câmeras, uma para cada 127 habitantes. Nova York, que recebe 40 milhões de turistas por ano e onde vivem 8 milhões de pessoas, conta com apenas 5 mil câmeras.
O avanço da vigilância por vídeo é constante e onipresente. Mas instalar cada vez mais aparelhos não é uma solução sustentável, já que é quase impossível para os olhos humanos monitorar todas as imagens que registram o que ocorre na cidade. Precisaríamos de uma cidade paralela, construída nos subsolos da cidade real, para vigiar tudo o que ocorre nas ruas acima. Com robôs (ou talvez com as mesmas ratazanas que atualmente infestam as profundezas das cidades?) poderíamos chegar a esse ideal de uma pessoa seguindo outra pessoa para evitar que ela cometa algum delito. Mas a tecnologia tem uma solução mais eficiente: agora que as câmeras são commodities que todo o mundo tem, as empresas começam a desenvolver tecnologias que interagem com as câmeras e as tornam mais “inteligentes”. Além disso, já existem câmeras inteligentes que contam com programas que não apenas filmam, como também reconhecem rostos, observam padrões de movimentação, reações inesperadas de una pessoa, ou que detectam por meio de temperatura, ou de sons se existe uma concentração de pessoas em uma esquina, ou em uma rua (podendo ser desde um grupo de amigos indo a uma festa, até uma reunião de manifestantes com bombas).
A tentação de comprar supostas soluções técnicas é tão grande que algumas perguntas e debates importantes são deixados de lado. Até que ponto as câmeras resolvem o problema da insegurança? Gastar mais significa diminuir a criminalidade, ou precisamos de outras soluções? Quais consequências sociais e culturais estamos dispostos a tolerar em troca do monitoramento permanente? Por fim, uma última pergunta politicamente central: quem decide pela incorporação de tecnologias, o Estado, ou o mercado? A decisão se baseia em demandas e estatísticas reais, ou em campanhas de marketing feitas pelas empresas de tecnologia?
A adoção das câmeras não está relacionada aos índices de criminalidade. Ao invés de se basearem em estatísticas, os governos decidem comprá-las com base nas forças do mercado. As empresas privadas são as que decidem que devemos nos equipar com câmeras sem nos questionar para quê, como devem ser usadas, quanto pagamos por elas (em dinheiro e em bens não materiais, como a liberdade e a privacidade). Mesmo que não seja uma novidade: as guerras incentivadas por empresas de defesa e vendedores de armas, as epidemias e seus laços com as grandes multinacionais de patentes de medicamentos, ou os vírus de computador cuja solução depende da ação de grandes corporações tecnológicas são outros exemplos.
Na Argentina e no resto do mundo, a instalação das câmeras não responde a critérios racionais. A compra de tecnologias de vigilância por vídeo não se deve a critérios demográficos: existem grandes cidades com poucas câmeras e cidades pequenas com centenas de câmeras. A decisão também não se baseia em estatísticas de criminalidade: porque além de ser difícil ter acesso a esses dados, os números da segurança pública se baseiam em parâmetros diferentes (denúncias policiais que sempre são incompletas, dados do sistema de saúde, informações de companhias de seguro, estatísticas privadas e do Estado) e levam em consideração delitos muito diferentes. Entretanto, todos eles parecem ser resolvidos com câmeras.
Existem cidades com altos índices de delitos urbanos que trabalham com planos extensos de instalação de câmeras, mas o mesmo ocorre em distritos com poucos delitos que compram esse tipo de equipamento. Existem cidades que registram muitos roubos de automóveis, e outras onde o crime mais comum é fruto do narcotráfico, além de lugares onde a segurança urbana cresce para evitar as consequências da desigualdade social. Mas frente a situações de insegurança tão distintas, a tecnologia se apresenta como una solução comum. Além disso, em todas as cidades — muito além de suas características criminais — se instalam os mesmos modelos e marcas de câmeras, vendidas pelas mesmas empresas. “Bosch”, “Panasonic”, e “câmeras domo de 360 graus” são expressões que se repetem nas licitações realizadas em Tafí Viejo, Tucumán, ou Chicago, nos Estados Unidos.
Seja em Tucumán, ou em Chicago, a ilusão de que ter um iPhone é estar melhor conectado com o mundo é a mesma. Ou que entregar nossos dados ao Google é mais seguro do que colocá-los em nossos computadores ou pendrive comprados no supermercado. O marketing da tecnologia e a “paixão pela novidade” nos levam a instalar câmeras como solução mágica contra a insegurança. O fetiche da mercadoria começa a tomar conta das estatísticas.
Em fevereiro de 2015 a revista britânica The Economist publicou o relatório “Cidades seguras”7, que foi financiado pela empresa de tecnologia japonesa NEC, um dos maiores fornecedores mundiais de tecnologia de vigilância e controle biométrico para governos.
“A segurança está estreitamente vinculada à riqueza e ao desenvolvimento”, afirmou o relatório. Destacando que, mesmo com os sistemas mais modernos e a melhor infraestrutura, as cidades nas quais os habitantes se sentem mais seguros e onde ocorrem menos homicídios são aquelas que oferecem bons sistemas de saúde e transporte, melhoras na infraestrutura e uma série de fatores que contribuem para reduzir a criminalidade. O relatório também afirma que é difícil determinar qual desses fatores determina as condições de segurança. Por exemplo, várias cidades que se candidataram ou se prepararam para ser sede de Jogos Olímpicos aumentaram seus níveis de segurança pública: a reforma e ampliação de ruas, metrôs, iluminação pública e planejamento urbano também ajudam a criar um ambiente mais protegido, muito além da instalação de câmeras, realização de patrulhas ou do uso de câmeras nos uniformes dos policiais.
A respeito da relação entre segurança e bem-estar nas cidades, o relatório destaca um fator sempre repetido, mas frequentemente ignorado: as cidades mais fragmentadas socialmente, com condomínios fechados e muros internos, também são as mais inseguras. Não importa se o investimento em segurança é grande: quando as comunidades se fecham para evitar a criminalidade e a violência, elas geram mais insegurança. Além de admitir que a segurança continua a ser o resultado de diversas causas, o ranking das “cidades seguras” demonstra que as mais altas nessa categoria não são necessariamente as mais vigiadas (ver infográfico).
No top dez se encontram Tóquio (Japão), Cingapura (Cingapura), Osaka (Japão), Estocolmo (Suécia), Amsterdã (Holanda), Sydney (Austrália), Zurique (Suíça), Toronto (Canadá), Melbourne (Austrália) e Nova York (Estados Unidos). Embora todas contem com sistemas de vigilância, nenhuma delas faz parte do ranking das cidades com mais câmeras do mundo. Nova York, que tem dez vezes menos câmeras que Chicago, também tem menos homicídios. Tóquio, com 10 mil câmeras para 13 milhões de habitantes, lidera o ranking de segurança. Toronto, que se nega a adotar o caminho da vigilância massiva (enquanto debate o dilema entre segurança e privacidade) também é uma das melhores cidades do mundo em outros aspectos, com saúde e qualidade de vida. Por outro lado, entre as cidades mais inseguras estão algumas das mais vigiadas: Pequim, Cidade do México, São Paulo.
As estatísticas locais não demonstram melhorais. Os relatórios internacionais demonstram que as cidades mais vigiadas não são as mais seguras. Os especialistas repetem em diversas ocasiões que a insegurança está diretamente relacionada à desigualdade social e que suas causas não múltiplas e não podem ser resolvidas com uma única solução. Ainda assim, a tecnologia de vigilância por vídeo continua a ser mostrada como uma solução de segurança e os governos continuam a destinar uma quantidade enorme de recursos a ela.
“A vigilância massiva é uma política com um modelo de negócios”8, afirma o jornalista de tecnologia canadense Cory Doctorow. “Espiar todo mundo não inibe os terroristas, mas permite que as empresas de produtos e serviços militares e as companhias de telecomunicação ganhem rios de dinheiro”. Doctorow destaca que vivemos no paradoxo de um mundo que acredita ser cada vez mais eficiente, mas onde muitas decisões são tomadas com base em evidências futuras: usemos estas tecnologias porque elas nos permitirão resolver um problema. Quem disse? As mesmas empresas que vendem as soluções, com seus modelos de negócios adaptados ao “que a política exige”. Nesse caminho, “transferimos uma enorme riqueza para um pequeno número de jogadores, que têm dinheiro suficiente para faz lobby e garantir que essas decisões políticas continuem sendo tomadas”.
Na Argentina, três empresas compartilham a instalação e a manutenção dos sistemas de vigilância por vídeo nos municípios. Elas não apenas vendem as câmeras, como também os equipamentos de localização via satélite, além de darem suporte técnico e se encarregarem das redes de fibra ótica necessárias para transmitir as imagens. As relações que essas empresas estabelecem com os municípios são vitais, já que são eles que decidem o que fazer com a verba para tecnologias de segurança que recebem dos governos estadual e federal, embora muitas vezes também decidam gastar parte das próprias verbas “a pedido dos cidadãos”. O poder dessas empresas é o lobby e, como ocorre frequentemente com as empresas de tecnologia, tratam-se de monopólios que dividem territórios para vender seus produtos9
A primeira é a Telefónica Ingeniería de Seguridad (TIS), que pertence à multinacional Telefónica, cuja vantagem é a de ser proprietária das redes de telecomunicação e fibra ótica. Assim, a empresa pode oferecer “pacotes” de vigilância por vídeo e contar com sua própria infraestrutura para transmitir as imagens e os dados. Em sua página a empresa oferece os combos necessários para a segurança, incluindo centros de monitoramento com tudo incluso: a empresa instala tudo, coloca em funcionamento e realiza a manutenção. E a oferta não se limita aos municípios, estendendo-se a todo tipo de lugar que exija um sistema de vigilância interna: hospitais, aeroportos, prisões, fábricas, galerias de arte. A Telefónica possui um relacionamento excepcional com o kirchnerismo, embora a relação também fosse positiva com os governos anteriores, desde que assumiu o serviço telefônico após a privatização da Entel em 1990. Além disso, a empresa possui vínculos com empresários dos meios de comunicação, como Sergio Szpolski, que atualmente é proprietário de seis por cento das ações da empresa espanhola, e utiliza seus contatos com o governo kirchnerista para ajudar a empresa a vencer as licitações.
A segunda empresa é a Ubik2, especializada em sistemas de satélite e fundada em 2008, logo após a posse de Daniel Scioli como governador da província de Buenos Aires, quando o estado começou a investir boa parte do orçamento de segurança na compra de câmeras. Um dos gestores da empresa, Rodrigo Campbell, formado em Transporte e Logística pela Universidade da Marinha Mercante, foi vice-presidente da Câmara Argentina de Empresas de Segurança e Investigação, além de ter bons contatos com o kichnerismo, incluindo muitos políticos de cidades que se compraram sistemas de vigilância por vídeo fornecidos pela Ubik2.
A terceira empresa, a Global View, é a mais poderosa. Seu nome é sinônimo de vigilância por vídeo na Argentina, pois sempre ganha licitações para sistemas de segurança e possui laços estreitos com o poder nacional e internacional. Seu fundador é Mario Montoto, ex-integrante dos Montoneros e braço direito de Mario Firmenich, um dos líderes da organização durante os anos 70. Nascido em La Plata em 1956 e militante peronista desde a escola secundária, Montoto se dedica há mais de duas décadas ao negócio da vigilância por vídeo, à indústria bélica e à consultoria sobre o narcotráfico e ameaças transnacionais. Ele fundou a Global View em 2008, embora tenha instalado a primeira câmera de segurança já no início dos anos 80 no México, “em frente à casa onde vivia com outras pessoas”, seus companheiros exilados de militância política. Nos anos 90, após os indultos do governo de Carlos Menem a militares e a seu antigo chefe, Firmenich, Montoto deixou a militância política e se dedicou à atividades privadas. Desde então, ele negociou com todos os governos: vendeu vinhos, foi empresário do setor metalúrgico, de transportes e ferrovias.
Em 2003 fundou a Codesur (Corporação para a Defensa do Sul), que se dedica à venda de produtos e serviços para a indústria bélica e onde ainda ocupa o cargo de presidente. “Uma vez que desejamos a paz, trabalhamos para a defesa e a segurança nacional”, afirma o slogan da página da empresa na internet. A companhia vende equipamentos para a Força Aérea, a Marinha e o Exército, realiza a capacitação de pilotos e forças de segurança, além de fornecer “equipamentos para a guerra eletrônica” e “escoltas vip”. Tudo “pronto para usar”, garante Montoto. Entre seus clientes estão as Forças Armadas, as polícias e todos os níveis do governo, que contratam a empresa para realizar a manutenção de submarinos, reparar helicópteros do Exército, ou fazer a manutenção dos aviões da frota presidencial. O conselho diretivo da empresa garante o relacionamento: entre os seus integrantes há um general de divisão, um brigadeiro e um vice-almirante, todos aposentados. Aqueles que perseguiam Montoto nos anos 70 (e assassinaram sua primeira esposa em uma operação do Plano Cóndor no Peru) são hoje seus sócios e clientes.
Além de comandar as atividades na Codesur, Montoto é relevante em áreas fundamentais do poder: a imprensa e entre os funcionários de todos os governos. A partir de seu escritório em Puerto Madero, com cinco relógios que marcam as horas em Pequim, Washington, Buenos Aires, Tel Aviv e Madri, Montoto admite que uma de suas virtudes é se dar bem com todo mundo: “Não encrenquei com Menem, nem com De la Rúa, nem com Duhalde. Também não vou arrumar encrenca com a família Kirchner”, admite.11 Ele também confirma seu bom relacionamento como secretário de segurança Sergio Berni, com o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, e com o secretário de segurança da cidade de Buenos Aires, Guillermo Montenegro.
Montoto reuniu todos eles com os dirigentes de La Cámpora em novembro de 2014, durante um congresso sobre “segurança hemisférica”, uma das atividades que realiza sob a égide da Fundación Tadea, que também edita livros e realiza cursos de capacitação em temas de defesa e segurança. No que diz respeito à imprensa, Montoto também é responsável pela revista DEF (dedicada a temas de defesa) e pelo programa de televisão Def TV, a frente dos quais está o coronel aposentado Gustavo Gorriz. A Global View, sua empresa dedicada à vigilância por vídeo, também teve laços com o mundo televisivo, com vínculos comerciais com o empresário Daniel Hadad, quando ainda era proprietário do canal a cabo C5N (vendido em seguida ao grupo Indalo, vinculado ao kirchnerismo).
Na GlobalView, Montoto centralizou seus negócios de vigilância por vídeo a partir de 2008. A empresa faturou as licitações de sistema de vídeo mais importantes do país em grandes localidades da província de Buenos Aires, como Lomas de Zamora, Tigre, Campana, Escobar, Lanús e Mar del Plata. Além disso, a empresa também possui contratos com o Ministério de Segurança Nacional (por exemplo, fornecendo câmeras à Políca Federal na cidade de Buenos Aires) e com o governo da cidade de Buenos Aires, fornecendo serviços de câmeras e manutenção do sistema da Polícia Metropolitana, além de ter vencido as licitações de outros grandes centros urbanos do país, como Rosario.
Em fevereiro de 2012, Montoto vendeu a Global View à multinacional japonesa NEC, líder mundial no setor. A venda (cujo maior capital é sua enorme influência nas licitações e as relações já estabelecidas com os as pessoas que tomam as decisões de compra de materiais de vigilância por vídeo nos municípios) foi avaliada em 30 milhões de dólares e o empresário argentino manteve 15% das ações.12
À frente da empresa, na presidência da NEC Argentina, está Carlos Martinangeli, um homem próximo ao ministro kirchnerista Aníbal Fernández, não apenas politicamente, mas também porque ambos ocupam a conselho diretivo do clube de futebol Quilmes. Entretanto, ao contrário se sua equipe predileta, com destinos esportivos imprevisíveis, o negócio das câmeras é bastante seguro: “A América Latina é um mercado potencial muito grande para a vigilância por vídeo, já que ainda não foi explorado. Queremos que a GlobalView seja a maior empresa do mundo no setor”, declarou Martinangeli. Enquanto isso, a NEC Argentina já controla o mercado dos sistemas de identificação por impressões digitais em prédios do governo nacional, como o Ministério do Interior.
A influência de Montoto é tão grande que ele próprio acompanhou o governador Daniel Scioli a Jerusalén, Israel, para comprar os equipamentos do centro de monitoramento que foi instalado em La Plata, a capital da província.
Os laços entre os empresários do setor de segurança dedicados à vigilância por vídeo, os escalões políticos mais altos e os meios de comunicação são evidentes. Os donos das empresas não aparecem nos sites das empresas, mas não se escondem das câmeras nos encontros políticos e midiáticos. De tempos em tempos, esses vínculos também aparecem em acusações de corrupção nas licitações, ou no uso duvidoso das verbas públicas, que são sempre transferidas para as mesmas empresas, o que por si só já é indício de irregularidades. Em fevereiro de 2011, a cidade de Bahía Blanca foi palco de um escândalo quando Mario Montoto declarou no canal a cabo C5N que havia vencido uma licitação para fornecer 50 câmeras antes mesmo do fim do processo.13 Em outras cidades as denúncias de corrupção se repetiram. Entretanto, o avanço das câmeras e dos centros de monitoramento não chegou ao fim.
Uma coisa é certa: para alguns problemas, a tecnologia é uma ótima solução. Ninguém acha ruim perder um pouco menos de tempo realizando uma transação inteiramente online, nem ignora as informações de mapas de trânsito “inteligentes” em horas de pico. As pessoas também não abrem mão dos dispositivos de alerta criados para mulheres em situação de risco de violência. Contudo, muitas dessas e de outras soluções tem um custo alto: esses dados ficam na mão de alguém. Pode ser um governo, com regras claras (ou não tão claras) sobre como manipular as informações e cuidar da privacidade. Entretanto, esses dados também podem ficar na mão de empresas. O cenário é complexo. As empresas não agem sempre contra os interesses das pessoas, os governos não fazem apenas negócios espúrios, e as coisas nem sempre têm consequências negativas. Porém, grande parte dos orçamentos públicos continuam a ser transferidos às mãos de empresários que fazem lobby e políticos que precisam “mostrar trabalho”. Se isso significa encher as ruas de câmeras, tudo bem. E, se além disso, as imagens chegam à imprensa e mostra que as ações estão ocorrendo, melhor ainda.
A relação simbiótica entre as câmeras de segurança e a imprensa é tão grande que alguns dos materiais registrados por elas chegam a ser utilizados em campanhas publicitárias. Isso ocorreu no caso do “Herói de Tigre”, um homem que correu sobre os trilhos do trem segundos antes que ele passasse para tirar um caminhão que havia parado, evitando um acidente. O veículo e o homem saíram ilesos e o trem passou sem matar ninguém. Meses depois, a imagem foi utilizada em parte das “Camaritas”, uma campanha de marketing criada para a Coca-Cola pela filial Argentina da Young & Rubicam, e foi a primeira propaganda nacional a chegar ao intervalo comercial do Superbowl, nos Estados Unidos, onde foi visto por 100 milhões de pessoas ao mesmo tempo.
Para criar o anúncio, a agência instalou câmeras “ocultas” que captaram imagens que demostram que as pessoas fazem boas ações mesmo quando ninguém está vendo. Nesse vídeo, o “Herói de Tigre” aparece como uma das pessoas corajosas e o município de Tigre — que cedeu a imagem depois de conversar com o homem — aparece com sua marca no comercial que foi exibido no mundo inteiro. Quando foi lançado nas redes sociais, os comentários foram majoritariamente positivos. A repercussão internacional também foi bem sucedida: “Camaritas” foi eleita a melhor propaganda pelos telespectadores do Superbowl 2012.
Com sua presença nos noticiários e até nas propagandas, as imagens das câmeras de segurança vão legitimando a aparição nos meios de comunicação. Elas são vistas como uma forma de “combater a insegurança” na forma de olhos capazes de eliminar os delinquentes apenas por sua presença. Mas também como uma forma de vigilantretenimento (uma mistura de vigilância e entretenimento), utilizada pela publicidade como um marketing positivo e emocional, como ocorre na campanha da Coca-Cola.
Contudo, enquanto a vigilância se estende e convivemos com ela, aparece novas perguntas, conflitos e dilemas. As perguntas têm respostas ocultas ou que continuam a ser debatidas. Entre elas: Onde as câmeras são colocadas? Elas podem ser camufladas, ocultas, ou temos direito de saber os lugares onde somos filmados? Quanto tempo podemos guardar as imagens e para que fins elas podem ser utilizadas? Os meios de comunicação podem ter acesso a seu conteúdo? Os dilemas retomam o difícil equilíbrio entre o direito à segurança e o direito à privacidade. Quais direitos deixamos de lado com o objetivo de garantir a segurança? Existe uma forma boa e uma forma ruim de sermos vigiados? A privacidade —ou o que conhecíamos como tal — está fadada a desaparecer? Podemos exigir nossa privacidade, ou devemos aceitar seu final?
Na cidade Buenos Aires, a lei 2.602 de 2007 regula o funcionamento das câmeras no distrito. As autoridades são obrigadas a sinalizá-las, para que os cidadãos saibam que estão sendo vigiados. Junto com essa norma, o uso das câmeras também deve respeitar a lei 1.845 (de 2005), de Proteção de Datos Pessoais, que resguarda as imagens como um dado de caráter pessoal que deve ser tratado sem violentar o direito à privacidade. Isso significa que, embora estejam em espaço público, as pessoas têm o direito e a expectativa de privacidade e anonimato, garantido por diversas normas nacionais e internacionais de direitos humanos
Obviamente, há problemas frequentes com as placas de identificação das câmeras e com a cessão das imagens à imprensa. Na cidade de Buenos Aires, a Defensoria Pública, por meio da Direção de Proteção aos Dados Pessoais, se encarregou de resolver algumas dessas questões. Em 2013, o sociólogo Andrés Pérez Esquivel levou ao organismo um pedido para que a Secretaria da Justiça e Segurança do município divulgasse uma lista com a localização de todas as câmeras instaladas na cidade. A resposta foi que essa informação era “confidencial”, tirando poucos dias depois as informações sobre a localização das câmeras do site da secretaria. A Defensoria já havia recebido outra resposta negativa, que se somava à fala do secretário de segurança Montenegro em uma audiência realizada na Câmara Legislativa, quando afirmou que revelar a localização das câmeras permitiria que os delinquentes cometessem crimes.
Entretanto, isso contradizia os próprios termos da lei, de que as câmeras são preventivas. Dessa forma, se os cidadãos soubessem onde estão as câmeras, isso permitiria que “se fossem vítimas de um assalto, pudessem dissuadir o criminoso indicando que estão sendo filmados. Ou poderiam caminhar em direção à câmera mais próxima e discar 103 para evitar qualquer tipo de risco, caso não haja um policial nas proximidades”. Além disso, esclareceu o sociólogo: “O crime organizado sempre procura por câmeras de vídeo na região onde pretende atuar”, de forma que os únicos prejudicados com o sigilo eram os habitantes da cidade. Mas, por fim, a Secretaria tornou pública a localização exata das câmeras e publicou tudo nos sites oficiais.14
O mais paradoxal é que, ao mesmo tempo em que as autoridades se negam a divulgar onde estão as câmeras aos cidadãos, elas entregam permanentemente as imagens aos canais de TV. Isso aconteceu em 2011, quando, de acordo com um relato de Pérez Esquivel, “o secretário portenho de segurança pública criou o programa Pronto Baires, com o objetivo de responder de maneira rápida e eficiente aos pedidos de informação feitos pela empresa, sancionando a resolução No. 314/11 para criar convênios com os canais de televisão”. Pouco depois Esquivel negou publicamente ter assinado o documento. Contudo, naquele momento também já se sabia que para que o Pronto Baires entrassem em ação, a prefeitura havia contratado a empresa de consultoria AR y Asociados, vinculada à Global View, a empresa de Mario Montoto que havia instalado as câmeras de segurança15. Além disso, um dos diretores da GlobalView havia trabalhado como gestor do Canal 9 e do C5N, que tinham acesso e mostravam na programação as imagens das câmeras de segurança.
O círculo de relações é o mesmo que se produz em Tigre e em outros municípios da Argentina: os funcionários públicos declaram que as câmeras são instaladas para evitar crimes, mas — mesmo que isso possa ou não acontecer —, em pouco tempo as câmeras passam a ser utilizadas nas campanhas de marketing da cidade e na imprensa como recurso de campanhas eleitorais. Pérez Esquivel destaca que isso esconde um perigo chamado “paradoxo do in fraganti”, descrito por seu colega brasileiro Bruno Cardoso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Quando são divulgados os vídeos de sucessos cria-se a necessidade política e operativa de produzir mais vídeos, o que exige que mais crimes ocorram em frente às câmeras, ao mesmo tempo em que se deseja diminuir a criminalidade”.
Deixando de lado a vigilância do Estado, das empresas privadas, ou entre os próprios cidadãos que filmam ou fotografam qualquer pessoa nas ruas e postam as imagens no Instagram, ou nas redes sociais sem perguntar se os retratados estão de acordo, a pergunta que resta é a seguinte: Existe uma vigilância ruim e uma vigilância boa? Se entramos em um processo inexorável de filmar nossas vidas, como pensar sobre o limite entre o público e o privado no futuro?
Pensei na minha infância em La Plata, ainda durante a ditadura. Meus pais e os pais de outras crianças eram sempre vigiados pelas forças de segurança ao sair de casa. Cada ida à praça, no carrinho de bebê, cercados por esses homens (não por máquinas de vigilância), que nos seguiam para assegurar que estivéssemos realmente aproveitando o sol e não nos encontrando para conspirar contra o regime. Me lembrei, então, da minha conversa com Claudio Ruiz, advogado e ativista chileno dos Direitos Digitais, nascido, como eu, no fim dos anos 70:
—Há alguns meses falei em um encontro sobre vigilância no Parlamento inglês — contou. E lá, em um país hipervigiado, disse que achava curioso que na América Latina não nos preocupamos mais com a vigilância. Isso porque nascemos em uma sociedade vigiada. Não tecnológica, mas me lembro bem que em minha infância, filho de um dirigente sindical e militante, ligavam todos os dias no telefone da minha casa. A ordem era que eu, uma criança, tinha que atender e negar que ele estivesse em casa.
—Ou seja, já conhecemos desde criança a ideia da vigilância, mesmo que não soubéssemos muito bem do que se tratava.
—Claro, aos 7 anos só respondemos a uma instrução: “Atende o telefone e não diga pra ninguém onde a gente está”. Mas agora, trinta anos depois, o que mudou na sociedade para que aceitemos sem questionar de onde vêm as ordens?