Balões vigilantes podem filmar dentro da sua casa
Por Leandro Demori
Leandro Demori é jornalista, editor do Medium Brasil e autor de "Cosa Nostra no Brasil, a história do mafioso que derrubou um império" (Companhia das Letras, 2016)
Com 13 câmeras, capacidade de identificar a placa de um carro a 3 quilômetros de distância e poder para transmitir imagens ao vivo para dezenas de monitores, os balões não-tripulados de vigilância são as vedetes do esquema de segurança olímpico. As câmeras realmente combatem o crime? Como fica a privacidade dos cidadãos? Quem vigia os vigilantes?
130 policiais meteram o pé na porta de casas em cidades do Amazonas, Ceará, Paraíba, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul nas primeiras horas da manhã do dia 21 de julho deste ano. Em uma ação incomum às forças de ordem brasileiras, desta vez os agentes não buscavam traficantes, políticos ou engravatados corruptos: eles estavam atrás de terroristas.
Após o anúncio das dez prisões temporárias, duas conduções coercitivas e 19 buscas e apreensões, a Divisão Antiterrorismo da Polícia Federal divulgou que os envolvidos eram membros de um grupo chamado Defensores da Sharia. Eles planejariam pela internet modos de adquirir armamentos para cometer crimes em nome do Islã.
O sinal amarelo estava aceso havia um mês, quando a PF prendera em Chapecó, Santa Catarina, Ibrahim Chaiboun Darwiche, após suspeitas de ligação com o grupo terrorista Estado Islâmico — a polícia garante que Ibrahim morou em uma cidade controlada pelo EI e que planejava de modo sistemático um atentado no Brasil, com treinamentos cotidianos que incluíam disparos com armas de fogo, exercícios físicos e estudo do Corão, tudo registrado em um diário apreendido pelos policiais.
Criticado pela imprensa do mundo pela insegurança para a realização dos Jogos Olímpicos, o Brasil parece querer mostrar músculos em uma área que vem naufragando ao vivo diante da intensa cobertura midiática: contra todas as expectativas declaradas pelo governo, a segurança pública vive o caos no Estado do Rio de Janeiro. No acumulado de janeiro a junho de 2016 houve aumento de 17,5% no número de crimes de letalidade violenta (Homicídio Doloso, Latrocínio, Lesão Corporal Seguida de Morte, Homicídio Decorrente de Oposição à Intervenção Policial); os roubos de rua (Roubo a Transeunte, Roubo de Aparelho Celular, Roubo em Coletivo) aumentaram espantosos 34,1%, conforme dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP).
O esforço para mostrar uma cidade segura está no contingente de forças de ordem recrutadas para os jogos — são milhares de policiais, soldados do exército e da Guarda Nacional — e também na tecnologia. Comprados pelo governo do Rio por 24,5 milhões de reias, os quatro balões de vigilância são capazes de permanecer no ar por dias a custo muito menor que o dos helicópteros utilizados até então. Com 13 câmeras, as aeronaves monitoram um raio de 4 quilômetros de distância, com precisão para identificar detalhes como placas de automóveis, armas e facas. Produzidos pela empresa brasileira Altave, os balões são também fabricados no exterior por outras companhias e monitoram áreas de conflito como Afeganistão, Faixa de Gaza e a fronteira México-Estados Unidos. “Cada equipamento instalado na Barra, em Deodoro, no Maracanã, e em Copacabana vai gerar uma imagem que é uma espécie de google earth ao vivo”, explica Leonardo Mendes Nogueira, diretor da Altave.
Os balões que vigiarão as multidões durante os jogos fazem parte do propagado legado olímpico. Treinados pela fabricante, 60 policiais militares e 20 guardas civis serão os responsáveis por operar as aeronaves após os jogos, em esquemas de segurança no cotidiano do Rio de Janeiro, em locais e datas ainda não definidos.
Existem diferenças entre utilizar esses equipamentos em grande eventos e apontar suas câmeras para zonas residenciais. Quais protocolos de segurança de dados serão seguidos pelas forças de ordem? Para onde serão transmitidas as imagens? Quem terá acesso a elas? Onde serão armazenados os back ups? Quem terá acesso a eles? Em áreas urbanas densas como as favelas cariocas, onde, do alto, mal é possível separar vielas, ruas, pátios de casas e interiores de habitações, quem garante que as câmeras não filmarão cidadãos dentro de suas próprias casas, em ações privadas?
Cada balão possui oito portas de transmissão ao vivo que podem ser conectadas ao mesmo tempo: existe garantia de que essas portas são seguras? Existe a possibilidade, por exemplo, de que essas transmissões sejam “vendidas” ou “alugadas” para fins menos nobres do que a segurança da população? Quais mecanismos garantem que uma ou mais dessas portas não sejam usadas para transmitir imagens ao vivo para criminosos, por exemplo?
“Não vamos entrar em detalhes técnicos sobre esses temas neste momento”, respondeu Enrico Streliaev Canali, chefe de comunicação do Ministério da Justiça, órgão que coordena as operações de segurança dos jogos.
A negativa de transparência governamental é mais um elemento que mostra a fragilidade do sistema diante do quadro atual: o Brasil não tem uma lei de proteção de dados pessoais e não existem protocolos claros de controle desses equipamentos, nem em termos gerais, nem em termos específicos para o caso dos balões.
Além disso, três dos quatro balões serão operados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, uma corporação com longa ficha de abusos de poder contra a população civil — a mais recente delas foi, por ironia, o sequestro justamente de um atleta neo-zelandês, liberado após pagamento de resgate aos próprios policiais que o sequestraram. “O que vocês fizeram de bom ontem? Eu fui sequestrado. Go Olympics! #Rio2016”, postou Jason Lee no Twitter após o crime.
What did you guys get up to yesterday?
— Jason Lee (@jasonleejitsu) 24 de julho de 2016
I got kidnapped. Go Olympics!#Rio2016
Dois motociclistas, agentes do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas, foram presos administrativamente. “Nós não treinamos a PM e a guarda civil nesse sentido [da proteção de dados e da privacidade]”, esclarece Leonardo Mendes Nogueira, diretor da Altave. “Nosso foco foi o manuseio do equipamento”.
As dúvidas se acentuam quando se tem ideia de quantas pessoas terão acesso ao dados: segundo o Ministério da Justiça, mais de 20 instituições de segurança pública — entre Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar, Guarda Municipal, Secretaria de Segurança do Estado do RJ — receberão as imagens, cada uma com seus próprios procedimentos de atuação e guarda de dados.
O caso chileno
“Posso imaginar ele filmando meu quarto”, disse a adolescente Stephanie Söffge Güemes aos advogados que ouviam sua história para montar uma ação contra a prefeitura de Santiago do Chile. “Estou fechando as janelas a toda hora, não posso mais viver uma vida tranquila como antes, me sinto vigiada 24 horas por dia, sete dias por semana, chego a ter calafrios”. Stephanie via a olho nu, da janela de seu quarto, um dos três balões instalados nos recantos mais pobres das áreas ricas da capital chilena. Em nome da segurança, sem protocolos de gestão das imagens e dos dados coletados — exatamente como no Brasil — , a prefeitura da cidade havia importado os equipamentos de Israel e os colocado em operação sem muita cerimônia até serem questionados por entidades de direitos civis como a Derechos Digitales.
“Era uma clara violação de direitos, a começar pela privacidade. Além do mais, esses são equipamentos militares, precisam de legislação especial para operar em zonas urbanas”, argumenta Pablo Viollier, advogado da Derechos Digitales e autor da peça que pedia à Justiça o fim do uso dos balões em Santiago.
A batalha, que durou meses, foi cheia de reviravoltas.
O sistema de vigilância foi anunciado em agosto de 2015. A Derechos se associou a outras ONGs e apresentou uma liminar na corte local alegando violação de direitos de privacidade. Os equipamentos, conforme a peça jurídica, estariam violando a constituição do Chile por serem de natureza militar e estarem sobrevoando zonas residenciais. “O globo tem capacidade de monitorar a rotina das pessoas, gravar em situações íntimas dentro das casas, pátios e piscinas”, descrevem os advogados.
Pelas redes sociais, as ONGs conseguiram mais dois cidadãos incomodados, dispostos e serem parte no processo contra o município. Na acusação, ambas diziam ver os balões de dia, e, à noite, se sentirem ameaçadas por suas luzes que piscavam de modo intermitente. “Se podemos ver os balões de dentro de casa, eles também podem nos ver.”
A liminar levantou uma polêmica pública nacional, com extensa cobertura dos meios de imprensa e forte envolvimento do poder público. A luta contra a delinquência comum justificava esses balões? Para a prefeitura, sim: celebridades foram destacadas para defender a permanência dos equipamentos no ar, campanhas digitais foram criadas, outdoors foram instalados e até mesmo pesquisas foram divulgadas, uma mostrando que 83% da população de um dos bairros apoiava os balões, outra, como último esforço, mostrando que os balões diminuíram em 44% a criminalidade local.
As ONGs contra-atacaram: circularam nas redes uma campanha pelo direito à privacidade. Com adesões, conseguiram chamar atenção de uma banca de advogados que encampou a causa de graça. Na corte de Justiça, diante de três dos mais renomados advogados chilenos contratados pela prefeitura, a Derechos Digitales e suas parceiras fizeram uma exposição oral impecável. Chamada pelos meios de comunicação como “a discussão pública mais importante sobre privacidade no Chile desde o fim da ditadura militar”, a luta terminou nas mãos dos juízes, que em primeira instância decidiram tirar os balões de circulação.
“Direitos humanos são menores que a segurança pública”.
A frase foi dita pelo sub-prefeito do bairro de Lo Barnechea, onde dois balões estavam instalados, após o veredito.
Diante da insistência de que os equipamentos eram perigosos por terem capacidade de filmar dentro das casas, ele emendou: “Tomei uma atitude em relação a isso: só contratei mulheres para operar os balões, porque os homens são mais voyers”. Uma emenda e tanto.
A derrota fez com que a prefeitura coletasse assinatura nas ruas, nas casas, buscando pessoas que apoiassem os balões. No recurso judicial, mais de 350 assinaturas foram juntadas ao processo, todas a favor das câmeras. “Mas nosso argumento jurídico era se os balões violavam direitos fundamentais, e não se as pessoas estavam a favor ou contra”, defendeu Viollier.
Migração do crime
Afinal, os balões equipados com câmeras realmente combatem a violência? A prefeitura de Santiago pagou um informe nos jornais de todo o país para divulgar um estudo que garantia: sim, os delitos no raio de operação dos balões haviam sido reduzidos em 25%. A Derechos Digitales desconfiou e foi investigar a fundo, requerendo da administração municipal os números sobre a criminalidade em toda a cidade — e descobriu que de fato o índice havia baixado nas áreas vigiadas, mas aumentado em outras. Os ladrões andaram algumas quadras adiante e seguiram praticando delitos. “Esse movimento é clássico”, diz Natalia Zuazo, jornalista argentina autora do livro Guerras de Internet, que trata dos impactos muitas vezes negativos das tecnologias. “Pesquisei em toda a América Latina e posso afirmar que câmeras apenas fazem o crime migrar. Existem modos mais eficazes e baratos de combater a violência”.
O processo no Chile terminou em junho deste ano. A prefeitura recorreu à Suprema Corte do país e conseguiu permissão para utilizar os balões. Para as ONGs de direitos civis, uma vitória parcial: a corte reconheceu que o modo o governo operava os equipamentos poderia violar direitos fundamentais dos cidadãos e considerou estabelecer limites ao uso e protocolos de gestão de dados. Hoje, os balões em Santiago têm delimitação de espaço físico, só podem estritamente operar e gravar espaços em públicos. “É um avanço, mas não dizem como vão controlar isso”, diz Viollier, da Derechos. “No Canadá por exemplo há limitações técnicas que dizem claramente os lugares onde não pode gravar. Se tiver casas muito próximas, não pode. Aqui é genérico, não diz como vai ser, quais são os padrões.”
Além disso, um inspetor ou delegado municipal precisa se certificar de que as imagens são eliminadas todos os meses, elas não podem ser mantidas por tempo indefinido. As ONGs estão estudando a hipótese de recorrer a instâncias internacionais de direitos humanos, como a Corte Americana Direitos Humanos, para tentar impedir os balões de funcionar de modo definitivo no Chile.
E no Brasil? A grande dúvida sobre a capacidade dos balões de vigilância de baixar os níveis de criminalidade persiste. Além disso, o Ministério da Justiça não se posicionou sobre a existência (ou não) de protocolos de direito à privacidade, controle das portas de transmissão das imagens ao vivo e segurança dos dados armazenados. Uma janela aberta para abusos e usos indevidos.
* Texto originalmente publicado no Gizmodo
