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Por Tatiana Dias e Joana Varon
Como redes sociais, apps e jogos infantis usam dados para vigiar, manipular e transformar crianças em pequenas consumidoras antes que elas possam se dar conta disso.
A recomendação dos pediatras não poderia ser mais clara: tela? Só depois dos dois anos. Mas, aqui no mundo real, em que adultos de todas as idades (eu inclusa) vivem absortos nos seus celulares, proibir minha filha de ter contato com eles pareceu uma missão impossível.
Gabi* tinha um ano quando mexeu no celular pela primeira vez - foi um vídeo no YouTube cuidadosamente escolhido - e, embora o aparelho não faça parte do seu cotidiano e atividades diárias, não é raro que ela acabe com ele nas mãos. Com receio de ela mandar mensagens inadequadas ou lotar a memória com selfies, baixei uns joguinhos - fui pelos mais populares da App Store - e o YouTube Kids, aplicativo que promete mais controle nos vídeos exibidos.
Mas bastam alguns minutos. Deixo Gabi entretida com um vídeo educativo, relaxo, vou fazer outra coisa, e quando eu volto ela está assistindo a um esquisitíssimo unboxing de algum brinquedo. Unboxing, para quem não sabe, é um vídeo em que o youtuber - mirim, quase sempre - abre a caixa de um brinquedo e comenta o produto em frente às câmeras. É bem fácil pra uma criança que costuma assistir Peppa Pig acabar caindo em um unboxing de um brinquedo da mesma personagem. Os dedinhos de Gabi - guiados pelo algoritmo que dita os vídeos relacionados - sempre acabam caindo neles, dando a ela um gostinho de publicidade disfarçada naqueles inconfundíveis "OOOI GENTE!".
Cansada dos vídeos, apelei pros apps. Os gratuitos embutem táticas em que, para avançar de fase, é preciso comprar alguma coisa - comida, poder, seja lá o que for -, mas com dinheiro de verdade, nas chamadas in-app purchases. Essa comunicação é sempre muito sutil - inversamente proporcional à exuberância do prêmio a ser comprado - e não é difícil encontrar relatos de crianças que deram um enorme prejuízo aos pais porque sabiam a senha da App Store - ou, mais fácil, tinham sua digital cadastrada para desbloquear o celular de um dos pais.
Além disso, a imensa maioria dos jogos gratuitos disponíveis tanto no Google Play quanto na App Store tem algum tipo de publicidade envolvida. Em geral, seus desenvolvedores não têm nenhum pudor em incluir banners (que geralmente usam as informações do próprio aparelho para identificá-lo e, assim, exibem anúncios direcionados a mim) que não têm nada a ver com o universo infantil. Assim, Gabi tem o jogo interrompido por buscas de passagens, apartamentos, roupas ou qualquer coisa que a internet achar que eu queira. Ainda bem que não costumo procurar por dildos, né?
As crianças estão submetidas aos mesmos mecanismos de monitoramento e vigilância a que todos nós somos submetidos na internet - seja por marketing ou por "segurança". E, se nós não percebemos todas as camadas, para os pequenos é praticamente impossível reconhecer as armadilhas e táticas para tentar transformá-los em pequenos consumidores.
É fato que nos meios digitais, assim como é mais fácil saber os gostos e padrões de comportamentos para adultos, o mercado também quer conhecer melhor as crianças. E isso é feito da mesma maneira: captando e analisando dados, de várias formas diferentes. O porém é que, se o consentimento de adultos para uso de dados já é questionável, nesse jogo, onde os alvos são crianças, temos situações ainda mais suscetíveis ao abuso e manipulações.
Um estudo conduzido pela Comissão Europeia analisou 25 dos games mais populares e mostrou que "todos os advergames (como são chamados os bancados por publicidade), todos os jogos de redes sociais e metade dos jogos de aplicativos têm anúncios, alguns deles contextuais", ou seja, direcionados ao dono do telefone por meio de análise dos dados de seu perfil.
Os resultados desse tipo de exposição não estão relacionados, apenas, ao gatilho de vontades proporcionado pela publicidade. Há várias pesquisas que mostram que essas técnicas de marketing - assim como conteúdo inadequado - podem ter reflexos na personalidade e no comportamento das crianças.
O mesmo estudo da Comissão Européia também demonstrou, por meio de testes comportamentais com crianças de 6 a 12 anos, que há efeitos subjetivos e profundos. Esses advergames impactam nos padrões de consumo das crianças a depender da propaganda exibida: jogar um que exibe anúncios de salgadinhos aumentou o consumo desse tipo de alimento entre crianças holandesas e espanholas. Veja bem: não foi o jogo que fez as crianças consumirem mais determinado alimento - mas, sim, os anúncios nele exibidos.
"Isso indica que os anúncios embedados no jogo têm um efeito subliminar nas crianças - afeta o comportamento sem que elas se dêem conta", diz o estudo.
Outro experimento, que analisou as compras dentro dos jogos, mostrou que basta desproteger o mecanismo de in app purchase para que as crianças se convençam a adquirir bônus, força ou qualquer outro benefício proporcionado pelo cartão de crédito. As mais vulneráveis são as de 8 e 9 anos.
Os pesquisadores também conduziram grupos focais com crianças entre 11 e 12 anos. Neles, elas disseram saber diferenciar propaganda de outro tipo de conteúdo. Quando foram expostas, no entanto, elas falharam em apontar o que era publicidade.
Não é por menos que a legislação de vários países, incluindo alguns da América Latina, restringe a publicidade dirigida a crianças. Em alguns países escandinavos, por exemplo, qualquer publicidade dirigida a crianças é proibida. Na nossa região também existe um movimento por interpretações que consideram esse tipo de publicidade abusiva por afetar o desenvolvimento das crianças e até mesmo acarretar problemas de saúde, como a obesidade infantil.
Em relação à privacidade, ainda não temos nada muito claro para proteger os pequenos da exploração comercial de seus dados de navegação. É preciso uma tomada de consciência de que ao colocarmos nossas crianças diante das telinhas, o risco não é tanto que elas falem com estranhos - mas, sim, de que estranhos tenham acesso a seus gostos e manipulem seus desejos.
Nos EUA, a coleta massiva de dados de crianças já gerou até processo. Em agosto de 2017, a Walt Disney Company foi processada por uma mãe californiana por usar nada menos do que 42 de seus apps e jogos para monitorar crianças e vender essa informação para anunciates. Segundo Amanda Rushing, autora da ação, joguinhos de celular como "Disney Princess Palace Pets", "Toy Story: Story Theater", "Disney Story Central" e "Star Wars: Commander" coletaram sistematicamente informações para criar perfis das crianças a serem explorados por publicidade.
A acusação se fundamenta no Ato de Proteção da Privacidade Online das Crianças (Children's Online Privacy Act - COPPA), que restringe algumas práticas publicitárias para crianças nos EUA. Com base nessa regulamentação, a subsidiária da Disney, chamada Playdom, já teve que pagar uma multa de 3 milhões de dólares por registrar dados de cerca de 1.2 milhões de usuários, a maioria crianças, em jogos online.
Empresas de anúncios online, como a Upsight, Unity e Kochava também foram citadas no processo como réus por terem embutido nos games da Disney softwares que permitem rastreamento de informações sobre as crianças. O processo alega que os joguinhos têm coletado localização geográfica, histórico de navegação e dados de utilização de apps, tudo sem consentimento dos pais - informações utilizadas por terceiros para mostrar publicidade.
O Palace Pets, um jogo cujo objetivo principal é comprar pets e acessórios para vesti-los, tem mais de 5 milhões de downloads na Playstore, e está sendo processado nos EUA por violações à privacidade das crianças. Em vermelho, na imagem, destacamos o aviso de que o jogo contém propaganda e possibilidade de compra. Na verdade, não dá muito para jogá-lo sem gastar - nós não conseguimos chegar nem na terceira fase.
A compra, nesses joguinhos, mesmo que para crianças de oito anos, fica a poucos cliques de distância. O único passo necessário é a digitação de uma série de números, que já tem acesso à página de processamento do cartão de crédito.
Outro jogo que também está na lista do processo é o "Where is my Water 2", que tem mais de 1 milhão de downloads na PlayStore. Nele, as propagandas direcionadas saltam no meio da tela, e ao clicar em um "leia mais", o jogador é diretamente conduzido à loja - no caso, da Amazon.
Dentro do jogo, também há propagandas para comprar instrumentos que facilitam a passagem de fase. Gastando dinheiro, o jogador pode colecionar patos de borracha e ajudar um jacaré a desentupir tubulações para poder tomar banho.
Novas habilidades alcançadas por compra ou sem pagar, caso o jogador insista em ganhar habilidades, algo que, ao que parece, virou moda antiga
Outro jogo campeão de downloads, com mais de 10 milhões na PlayStore, que também está listado no processo, o Star Wars: Commander, também se baseia em compras de recursos para vencer o Império. Os itens vão de R$1,75 a R$356,11 (!).
Venda de tesouros para trocar por recursos para a guerra nas estrelas
Para todos esses jogos, embora a Disney alegue que respeita a legislação norte-americana e que a coleta de dados é restrita, a empresa não nega em sua politica de privacidade que, de fato, reúne informações sobre seus usuários - mesmo que crianças - e viabiliza para terceiros.
Esse tipo de prática de coleta desproporcional de dados, no entanto, não se restringe à Disney. Jogos mais antigos e famosos como Fruit Ninja, com mais de 100 milhões de downloads na Playstore, e o Talking Tom, com 500 milhões, por exemplo, têm nota D no ranking de privacidade elaborado pelo PrivacyGrade. Isso significa que eles recolhem muito mais informações de seus usuários do que, de fato, seria necessário para que eles operassem, como informações como a operadora, dados de Google e Skype e localização. E isso sem um consentimento claro e explícito dos pais.
Vendas no app do My Talking Tom
Mais impressionante ainda são jogos como o My Singer Monster, por exemplo, que vão além no modelo de negócios e transformam a criança em uma operária nas fábricas de likes, shares e views das grandes redes sociais, alimentando seus algoritmos em benefício do próprio jogo. Nele, para começar, é preciso que você crie uma identidade de jogador (gamer ID) na Google Play Games. E, em seu decorrer, são vários os momentos em que são sugeridas oportunidades de compras, principalmente de diamantes, para alimentar a banda de monstrinhos.
Você pode, por exemplo, conseguir "moedas grátis" - nem tão grátis assim. O jogo faz parceria com a empresa Tapjoy, uma plataforma de marketing e monetização de apps, que coleta informações sobre nossos dispositivos, nossa localização, os anúncios que vemos, dados pessoais coletados por terceiros parceiros da empresa, o que pode incluir informações sobre nossos contatos e redes sociais, e utiliza essas informações para fins publicitários.
Com isso é possível ganhar créditos imaginários no jogo trabalhando de graça para a fábrica de algoritmos das grandes redes sociais. Isso pode ser feito dando views nos vídeos da própria empresa no YouTube, ou indicando amigos do Facebook para jogar também. Se a criança não quiser nada disso, ela ainda vai ser bombardeada com promoções e descontos para comprar as tais esmeraldas - mas, claro, por tempo determinado.
No YouTube não é diferente. A publicidade infantil - mesmo que disfarçada - rola solta. Em um estudo que coletou dados de 12,8 mil vídeos de 41 canais infantis populares no Brasil, Estados Unidos e Reino Unido, pesquisadores constataram que a maioria deles tem algum tipo de conteúdo publicitário disfarçado - os tais unboxing, por exemplo.
Esse tipo de propaganda é especialmente preocupante porque, no mesmo estudo, os pesquisadores perceberam que grande parte da audiência desses canais do YouTube - que são, afinal, infantis - é composta por crianças. Parece óbvio, e trivial, mas não é: o YouTube em tese não permite usuários com menos de 13 anos. Ou seja, há um imenso volume de conteúdo sendo feito, e distribuído, para um público que sequer poderia estar ali - e, por conta disso, está exposto a um volume enorme de publicidade não regulada.
E o problema do Youtube não pára por ai. Não é só a publicidade que se disfarça no conteúdo consumido pelas crianças online. A lógica de consumo de conteúdo nos sites mais populares entre crianças é a mesma do mundo adulto: no meio de um mar de informações, algoritmos organizam o conteúdo de maneira a indicar vídeos e posts que possivelmente irão interessar a elas.
O YouTube Kids, lançado pelo Google para tentar filtrar o conteúdo infantil e criar um espaço seguro para crianças, tem um sistema de recomendação de vídeos parecido com o de adultos. Ele leva em conta padrões dos vídeos na plataforma, o comportamento e a navegação para indicar novos conteúdos a serem assistidos. Só que as crianças, você sabe, gostam de assistir a mesma coisa zilhões de vezes em loop.
Para tentar tirar proveito dessa lógica, os produtores fazem vídeos iguais ou muito parecidos, de baixa qualidade, deixando as crianças imersas em seus próprios filtros-bolha de musiquinhas, bichinhos e unboxings. Assim, geram milhares e milhares de views, em loop, fazendo os produtores lucrarem. Não é a toa que bastam poucos minutos para que Gabi acabe presa em uma dessas produções duvidosas, mesmo que a partida de sua navegação tenha sido um vídeo original cuidadosamente escolhido.
Os impactos desse filtro-bolha infantil ainda estão sendo estudados. Mas pesquisadores sugerem que esse condicionamento de conteúdo faz com que os pequenos espectadores deixem de ter acesso à diversidade de opinião e assuntos, além de poderem ter comportamentos induzidos e reforçada a estigmatização social de si mesmos ou de determinados grupos.
A Peppa fake é um reflexo da navegação guiada pelo algoritmo: parecida e assistida por quem viu a original, ela acaba aparecendo no sistema de recomendações
Há, ainda, um lado mais sombrio desse sistema: muitos vídeos com conteúdo inapropriado disfarçados de vídeos infantis - e distantes a uma deslizada para o lado, mesmo no YouTube Kids. Peppas Pig fakes fumam cigarros e torturam os outros porcos com instrumentos de dentista. No Doutora Brinquedos do mal, os pacientes têm fraturas expostas e injeções transformam as pessoas em zumbis. Não é engraçado. É perturbador.
Gabi nunca caiu em um desses - o pior foram os unboxings que, acredite, já são horríveis - mas, por via das dúvidas, eu dei um tempo de YouTube Kids. E joguinhos. Sabe aquela máxima de que se você não paga pelo produto você é o produto? Então: com crianças é igualzinho. Só que os adultos respondem por eles mesmos. Os pequenos não.
No Brasil, hoje, 79% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos estão na internet. Se recortarmos mais a idade, chegaremos a números surpreendentes: 63% das crianças entre 9 e10 anos acessaram a internet nos últimos três meses. Aos 11 e 12 anos esse número sobe para 73%, segundo a TIC Kids, pesquisa feita pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil.
O que essas crianças fazem online? Pesquisam para trabalhos escolares, conversam com pessoas, redes sociais, baixam apps, postam fotos e assistem a vídeos, principalmente. Segundo a TIC Kids, quase 70% das crianças que usam a internet no Brasil estão no Facebook; 63% assistem a vídeos online.
Aliás, dos 100 maiores canais brasileiros no YouTube, 36 são direcionados à crianças até 12 anos!
A maior parte desses serviços, no entanto, determina que seus usuários devem ter, no mínimo, 13 anos (caso do Google e YouTube, por exemplo, e do Facebook, Whatsapp e Instagram). Ou seja: toda criança menor de 13 anos que usa algum desses serviços é, por definição, desobediente. Mas o problema, aqui, talvez não seja a desobediência - mas as regras e quem as aplica.
Segundo a mesma TIC, em relação a riscos online, 7% das crianças entre 11 e 12 anos tiveram acesso à pornografia, 12% adicionaram alguém que nunca tinham visto pessoalmente e 14% foram tratadas de forma ofensiva. Entre o total de crianças e adolescentes pesquisados, 10% já realizaram compras dentro de jogos (as in app purchases).
As redes sociais (Facebook, principalmente) e os sites de vídeos (YouTube) são a principal forma na qual as crianças têm contato com publicidade na internet. Seis em cada dez usuários entre 11 e 17 anos tiveram contato com propaganda nesses meios.
Um terço diz não gostar desse tipo de anúncio, mas os resultados são eficientes: 53% disseram ter seguido ou curtido a marca do anunciante e 33% afirmaram ter pedido o produto anunciado para os pais. Uma outra pesquisa, conduzida pelo canal Nickelodeon em 2012, mostrou que nas decisões de compra da família, 82% das crianças declaram a internet como principal fonte de pesquisa - número mais alto do que a televisão.
No Brasil, a publicidade dirigida à crianças que estimule o consumo é proibida. Não há regulação específica para a proteção da criança em ambiente online, mas o artigo 227 da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente já definem que a comunicação mercadológica direcionada à crianças é abusiva. Essa visão foi reforçada em 2014 com a aprovação da resolução 163 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Ela considera abusiva qualquer comunicação com linguagem infantil, com representação de crianças, qualquer pessoa, apresentador, personagem ou boneco que tenha apelo, e proíbe promoção com distribuição de brindes.
Julia Silva, youtuber mirim brasileira, em um de seus vários vídeos de unboxing
As regras também valem para a Internet e a fiscalização e punição de eventuais abusos são da alçada do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) - órgão que, vale lembrar, já classificou a resolução 163 como "censura". Na prática, pouco se vê a aplicação da resolução 163 em relação à internet.
E as empresas de internet, confortáveis em suas próprias resoluções e termos de uso - que, na prática, já se mostraram ineficientes, porque essas redes continuam recebendo crianças sem maiores problemas - continuam lucrando com os pequenos navegantes.
Ok, temos um cenário em que: crianças são usuárias massivas de internet; são expostas a publicidade e outros tipos de conteúdo nocivos embutidos em jogos, diversão e educação; isso impacta na formação de suas personalidades; empresas de internet ganham novos pequenos usuários aos montes, mesmo que para isso suas próprias regras sejam desrespeitadas. A primeira alternativa parece ser aquela clássica: proibir e restringir. Afinal, há muito perigo lá fora, não é mesmo?
Várias organizações e sociedades médicas têm recomendações nessa linha. A Sociedade Brasileira de Pediatria, por exemplo, diz que bebês até dois anos devem ser totalmente privados de telas; entre os dois e os cinco anos, o limite seria uma hora por dia. Em uma cartilha, os médicos brasileiros alertam para possíveis efeitos nocivos da internet: ansiedade, estímulo à sexualidade precoce, comportamentos violentos, adesão ao cyberbullying e outras consequências.
Em janeiro de 2017, no entanto, um grupo de 81 pesquisadores de universidades como Columbia, Oxford, Berkeley e Harvard publicaram uma carta aberta questionando o "pânico moral" e a "ansiedade contemporânea" dos medos relacionados ao tempo de tela. Para eles, não há evidências científicas sólidas o suficiente para as determinações rígidas dos pediatras em relação ao tempo de tela.
O foco da preocupação dos pais deveria ser o tipo de conteúdo, e não o tempo gasto pelas crianças com aparelhos eletrônicos. “As tecnologias digitais são parte da vida das nossas crianças, necessárias no século 21”, escreveram os pesquisadores.
É um direcionamento parecido com da Academia Americana de Pediatria, que mudou suas diretrizes em 2015. Antes a preocupação era o tempo de tela; hoje, uma perspectiva mais pragmática tira o foco do tempo e recomenda que os pais tenham uma postura ativa em relação à tecnologia. Isso significa, por exemplo, acompanhar de perto qual é o conteúdo consumido e não proibir, mas usar junto - jogar videogame com as crianças, por exemplo.
Usar mais a internet significa ter mais contato com possíveis perigos, é claro. Quanto mais tempo online, maior a possibilidade de exposição. Dados da TIC Kids, no entanto, mostraram que as crianças que mais usam a internet são, também, as que têm mais habilidades relacionadas à sua própria proteção online. Quem passa mais tempo conectado está mais sujeito a se deparar com publicidade ou conteúdo abusivo, mas também mais preparado para identificar e lidar com esses riscos.
A mediação dos pais, neste contexto, é um dos principais fatores de proteção - mesmo que a criança passe muito tempo conectada. Já mecanismos de restrição, como proibição ou software de controle, de fato reduzem riscos, mas também as oportunidades de aprendizado.
No debate sobre proteção dos adultos na internet, uma palavra-chave é consentimento: cada pessoa tem direito de saber e autorizar ou vetar qualquer uso de suas informações. Mas quando se trata de crianças o debate fica mais nebuloso: a partir de que idade é possível exigir consentimento das crianças? Nos EUA, uma lei aprovada em 2008, a COPPA que mencionamos anteriormente, fixou essa idade em 13 anos - antes disso é preciso consentimento dos pais para qualquer uso.
Mas será que as crianças têm realmente consciência do uso e da maneira como suas informações são utilizadas? E os pais? Realmente sabem o que está em jogo no uso de plataformas como YouTube, Facebook e advergames por seus filhos pequenos? O consentimento depende de conhecer o que está em jogo.
A internet pode parecer um ambiente hostil, mas também é um lugar em que conexões são feitas, a identidade é formada e reforçada e há muito conteúdo interessante que pode ser usado para aprendizado efetivo. Também tem apps e jogos ótimos e divertidos, ué, e vídeos engraçados e bem úteis e interessantes para crianças pequenas (e para pais aflitos por cinco minutos de descanso).
Mas, assim como o mundo lá fora, não rola deixar a criança sozinha explorar um ambiente que, infelizmente, foi projetado por adultos e para adultos - e guiado por entidades como o Chupadados. É por isso que Gabi continua consumindo conteúdo e jogando seus joguinhos, mas sempre com supervisão e em plataformas que garantam a segurança de suas recomendações. E sem a senha da App Store, claro.